quinta-feira, 21 de agosto de 2008

Cena 21 - Os donos do estacionamento

O ser humano compra um carro. Para isso ele junta 5 meses de salário, compromete outros 72, vende o celular, o relógio de marca, empenha o anel de formatura, a aliança da mãe e, se fosse verdade que silêncio vale ouro, empenharia o dele também. Além disso, paga imposto para aquisição do carro, para uso dele, para uso das vias públicas, para colocar o som, para ter uma lixeirinha, um porta CDs e água para limpar o pára-brisa. Aí sai satisfeito com o veículo, abastece, para pagar mais impostos, e vai ao mercado pagar outro imposto, porque os que ele paga já cansaram.

Chegando lá, depara-se com essa criatura legendária, o ser mal-vestido e completamente estranho que aparece na frente do veículo como se tivesse brotado do chão no exato momento em que se chega ao local de destino. O ser estranho começa então a fazer gestos que lembram os daqueles uniformizados que guiam os aviões na pista de pouso. Usam de artifícios altamente tecnológicos para chamar a atenção, como assobios e tapinhas na traseira do carro. E o sujeito? Rende-se à sabedoria daquele que parece conhecer o local como a palma da mão. Afinal, está diante do Dono do Estacionamento, conhecido entre os íntimos como Sr. Flanelinha.

O D.E. guia o individuo até o local que julga apropriado, cumprimenta e pergunta: “Pode dar uma olhada, chefe?”. Já vou avisando a vocês, motoristas desavisados, que isso é menos uma pergunta do que um anúncio. O ponto de interrogação é simbólico, assim como o atual poder da rainha da Inglaterra. O consentimento do dono (ou da rainha) é necessário, mas não existe a possibilidade de recusa. O parlamento, ou, neste caso, o Conselho Nacional de Flanelinhas, já tomou a decisão. E o uso da palavra “chefe” é ilustrativo, até irônico. Chefe é quem manda, aqui você manda, mas só se estiver disposto a colaborar com esta pequena transação. A troca? Seu trocado pelo serviço altamente especializado de vigia. Ou, seu trocado para que o D.E. volte para o subsolo até sua volta e deixe o seu carro em paz.

O sujeito tranca o carro e vai fazer suas compras. Antes de voltar, passa na banca e troca dinheiro, para a eventualidade de o carro não ter sido roubado, afinal, ninguém quer dar uma nota de dois reais inteira ao Sr. Flanelinha. O D.E. ressurge do terreno subterrâneo, observa seu destino e corre para chegar às proximidades do carro enquanto grita: “Tudo certinho, senhor!”. O indivíduo tenta ser rápido, mas lá está o D.E., guiando-o enquanto sai de uma vaga paralela em que estacionou de ré. Ele pára perto da janela, o sujeito, constrangido, vasculha os bolsos mas percebe que deu todo seu trocado ao ajudante do supermercado que o acompanhou com as compras. Temeroso, nem abre o vidro, apenas acena para o Sr. Flanelinha com uma expressão de “Por favor, tenha misericórdia, não foi culpa minha, meus bolsos estão vazios”, que lembra bastante a expressão de quem vomita no coleguinha depois de brincar de atirei o pau no gato.

Ele dá partida no carro sentindo o peso da transgressão que acabou de cometer. Afinal, falhou no pagamento do dono do estacionamento público. E ninguém entende por que faz meses que o Franklin só faz compras no mercado que fica a sete quadras de sua casa.

quinta-feira, 7 de agosto de 2008

Cena 20 - Um pouco mais sobre graça

Voltei. Ou não, sabe-se o que é preciso para voltar a uma forma de vida depois de um período longo de hibernação. Porque eu sumi, mas vocês permaneceram, continuaram interagindo, conjecturando, desabafando, polemizando, retrucando, ajudando, evoluindo (ou não). E eu? Vou tentar pegar o bonde andando enquanto espio os outros vagões para ver o que têm aprendido.

A TX outro dia resolveu me dar o benefício da dúvida e perguntou por que eu havia parado de escrever. Ótima pergunta, só pedindo ajuda aos universitários. Minha última postagem foi a saída da Embaixada. Talvez, diminuindo minha interação com o mundo, eu tenha esquecido o que dizer... Talvez, enquanto vivo situações importantes e delicadas, tenha resolvido evitar a exposição... Ou talvez, só talvez, os sentimentos e pensamentos que me inundam estejam mais leves, não façam tanta questão de sair.

Não sei que momento é este, não estava acostumada a ele. O momento em que se começa a receber as bênçãos que vem pedindo há muito. Momento em que o maior medo é dar um passo em falso e estragar tudo, seja por negligência ou por não saber demonstrar toda a gratidão. Mudança à vista, futuro tomando forma. O tempo, o trabalho e a espera fazendo sentido de novo. Planos deliciosos. Visão de uma vida que vale a pena.

O que fazer quando se perde a intensidade da súplica? Quando acabam as desculpas que inventamos para nós mesmos? Nossas frustrações e faltas costumam ser usadas para justificar tantas atitudes e omissões: “Não tenho buscado a Deus como deveria, mas é porque estou triste”. “Bebo/fico/danço pagode no casamento do Ismael (brincadeirinha) porque algo me falta, tenho uma carência que não parece ser suprida”. Grosseria porque não há motivo para ser muito legal com ninguém, afinal, o mundo não é muito legal com você.

Aqui, onde estou, as desculpas acabaram. Muitas mudanças à frente, mas todas trazendo paz. Qualquer falha é preguiça descarada, egoísmo ou escolha errada, sem maquiagem. E tem sido interessante me conhecer assim. Um ser com mais falhas do que eu imaginava, com menos decisão do que parecia, com menos paixão e disposição do que eu enxergava. Mas também alguém que agora sabe que nem por um segundo merece coisa alguma do Pai, e que mesmo nunca tendo merecido, recebe zelo e amor.

Tenho tentado mudar, me ajustar ao bom momento e aprender a orar para agradecer com a mesma intensidade de quando orava para pedir. Talvez eu não seja uma pessoa melhor – não da forma como previa que seria quando chegasse aqui –, mas talvez eu tenha aprendido a me deitar na misericórdia de Deus enquanto esqueço as desculpas e encaro a responsabilidade de tentar. Quero ser melhor para não ter de voltar para a sala de aula.

Se continuo pedindo? Sempre. Dependo de Deus para conseguir dormir ou acordar. E nada do que tenho ou tive pode ser sustentando sem a constante manutenção e orientação dEle. Mas peço com a certeza de que não mereço nada, não mereço o amor, o cuidado, as bênçãos, a amizade, a paciência, o perdão, a esperança da eternidade... mas que preciso de tudo isso, e o meu Deus é tão maravilhosamente bom que criou a misericórdia e a graça para guiarem suas próprias ações.

Digo essas palavras não para que haja acomodação, nunca vamos merecer, mas temos o dever de batalhar em direção ao ideal. Mas para que haja paz e confiança em saber que teremos todo o suporte necessário, e muito mais, pelo caminho. E que isso não tem nada a ver com o que somos ou como estamos...