sexta-feira, 17 de agosto de 2007

Cena 5, Take 3

Para quem não sabe, depois de meses e meses de acúmulo monetário e economia que beirava a pão-duragem, peguei minha carta de transferência do CCPOV (Clube dos Completamente Dependentes dos Ônibus da Viplan) para o CCDPG (Clube dos Completamente Dependentes do Preço da Gasolina). É isso aí, motorizei-me. Presente de Deus.

Mas isso me inspirou a escrever sobre algo que queima no meu coração há muito tempo: a estranha cultura dos membros do CCPOV. Essa comunidade cujo principal temor depois do câncer e violência, é ver aquele enorme mercedez amarelo passando ao longe enquanto tenta alcançar a parada. Após anos de pesquisa infiltrada, eis o relatório:

A primeira coisa que se deve saber ao adentrar tal comunidade é que ônibus são tão imprevisíveis, em termos de horário, quanto o humor de uma mulher com TPM. E, nos dois casos, reclamações não são bem-vindas, muito menos levadas em consideração. Você tem duas opções: Chegar mais cedo e esperar; ou chegar em cima da hora, perder o ônibus e esperar o próximo da linha. Leque de alternativas bastante limitado.

A parada é quase um evento social. Alguns estranhos que se encontram diariamente no mesmo local, no mesmo horário. Ninguém pergunta nomes, mas todos sabem detalhes uns sobre os outros como onde moram, onde estudam, quantos filhos ou que consulta médica têm no dia. Praticamente uma reunião de AA. Sei, por exemplo, que a senhora que se sentava no segundo banco da parada a partir das 7:55 mora mesmo em Valparaízo, mas vem dormir na casa da filha, no guará, porque a menina descobriu que tem alguma doença semi-grave, apesar de o dr. Marcos ter-lhe dito que são apenas gases. Achei uma atitude nobre, eu é que não monitoraria uma pessoa com gases, não importa quanto amor estivesse envolvido.

A espera na parada é uma gangorra de emoções. Não recomendada a quem tem algum problema cardíaco. Cada veículo maior do que um carro popular que surge ao longe, levanta uma expectativa quase cruel. Será ele? Parece, é amarelo. Está vindo nesta direção, e eu acho que reconheço a lentidão do meu motorista. É ele, tem de ser, olha só aquele farol quebrado. E aí, quando ele chega, era só outro W3 Sul. Decepção. Tristeza. Desespero. Outro ônibus surgindo ao longe. Agora tem de ser ele.

Quando o ônibus certo finalmente chega, todas as esperanças se refazem. Problema resolvido, ninguém nem se lembra da agonia de momentos antes. Toda aquela legião de membros do CCPOV se reúne a beira da calçada, como se o ônibus fosse passar direto pelo meio-fio sem parar, e só entrará nele quem correr e saltar para dentro, mais ou menos como os caminhões de lixo. Na entrada, o sistema é “salve-se quem puder”. Aparentemente aquela é a porta da paz e tranqüilidade eternas (ao menos pelos próximos 40 minutos) e quem não brigar por ela nunca mais vai a lugar nenhum na vida. Regra da Viplan, quem entra por último fica eternamente proibido de pisar em qualquer veículo coletivo. Vale impedir a entrada dos coleguinhas com o braço, colocar o pé na frente, empurrar com sutileza, tudo menos morder e puxar os cabelos.

Uma vez dentro do ônibus, a sensação de dever cumprido e tranqüilidade é reinante. Isso se você tiver a sorte de morar perto de uma das primeiras paradas, o que se traduz em viajar sentado. Caso contrário, o percurso é apenas mais uma parte do martírio, no qual o passageiro tenta, ao mesmo tempo, não cair nas curvas, não derrubar suas coisas sobre os outros e encolher o traseiro significativamente, para permitir a passagem dos próximos desafortunados das últimas paradas.

Eu moro perto da quinta parada, sempre ia sentada. Evito os assentos duplos, pego o único assento solitário do ônibus. A vida social dentro de um coletivo amplifica milhares de vezes o terrível constrangimento do elevador. Não são 3 minutos, mas quase uma hora ao lado de alguém que você não conhece e não faz questão de conhecer. No meu caso, eu sempre ia com o Ipod no ouvido, o que fazia de qualquer conversa educada uma interrupção quase angustiante. Pause apertado, fones removidos mas sem se distanciarem muito dos ouvidos, cara de quem tá com pressa. Não funciona muito bem em senhoras acima de 60 anos.

Nao, eu era a dona do assento solitário. Lá eu escorregava no banco, colocava minhas 600 músicas preferidas para tocar, casaco estrategicamente posicionado entre minha cabeça e a janela, e dormia, porque a única coisa que me fazia levantar mais cedo para pegar ônibus era a promessa silenciosa de voltar a dormir assim que entrasse nele. Há algum tipo de sonífero naquelas cadeiras, não sei dormir em lugar nenhum que não tenha cara de cama, mas aquela cadeira dura, naquele ônibus em movimento nada sutil é especial.

O destino. Aqui os fins justificam os meios (de transporte). Ao final da jornada, a liberdade e o silêncio do ar livre apagam qualquer sentimento vagamente assassino criado na última hora. Nao se iludam, este não é o fim. A viagem de volta, na hora do rush, é muito mais divertida, mas ela fica para depois.

2 comentários:

Bruno Oliveira disse...

Oh glória!!! Agora você está livre da dependência, ainda que sua rotina continue, há agora a chance de ampliar seus laços com os irmãos.

Liberdade, igualdade e fraternidade.


bjks

Unknown disse...

Puxa, que bom poder pegar carona com você! :D

Também tenho altas histórias como membro do CCPOV como as horas de terror que passei viajando junto ao doido do casaco de pele que ria que nem a Dona Neves, avó da Chiquinha e também quando quase fui beijado à força e vomitado na parada de ônibus por outra louca... rs

É isso aí!
beijos, ricardo